"Enquanto eu assopro a palma da mão para ver bolhas de sabão fugirem pelo ar,as borboletas que moram em minha alma saem todas para passear."

domingo, 18 de maio de 2014

Com mais leveza

 
Ana Jácomo

Em alguns trechos do caminho, às vezes bem longos, carregamos um bocado de peso na alma. Nem um pouco raro, às vezes sem sequer notarmos. A gente costuma se acostumar fácil às circunstâncias difíceis que, vez ou outra, podem ser mudadas até sem grandes elaborações e movimentos, sem que se precise contar com sorte, promessas, milagres e cercanias. A gente costuma se adaptar demais ao que faz nossos olhos brilharem menos. A gente costuma camuflar a exaustão. Inventar inúmeras maneiras para revestir o coração com isolamento acústico para evitar ouvi-lo. Fazer de conta que a vida é assim mesmo e pronto. Que somos assim mesmo e ponto. A gente costuma arrastar bolas de ferro e agir como se carregássemos pétalas só pra não precisar fazer contato com as insatisfações e trabalhar para transformá-las. A gente costuma mudar de calçada quando vê certos riscos virem na nossa direção, mesmo que nos encantem. A gente carrega muito no peso no sentimento, tantas vezes, porque resiste à mudança o máximo que consegue. Até o dia em que a alma, com toda razão, cansada de não ser olhada, encontra o seu jeito de ser vista e dizer quem é mesmo que manda.
Eu me flagrei pensando nessas coisas um dia desses. No que esse peso todo, silenciosamente, faz com a alma. No que isso faz com os sonhos mais bonitos e charmosos e arejados da gente. No que isso, capítulo a capítulo, dia após dia, faz com a nossa espontaneidade. No que isso faz, de forma lenta e disfarçada, com o desenhista lindo que nos habita e traça os risos de dentro pra fora. E o entusiasmo. E o encanto. E a grata emoção de estarmos vivos. Eu fiquei pensando no quanto é chato a gente se acostumar tanto. No quanto é chato a gente só se adaptar. No quanto é chato a gente camuflar a própria exaustão, a vida mais ou menos há milênios, que canta pouco, ri pequeno, respira míngua e quase não sai pra passear. Eu fiquei pensando no quanto é chato deixarmos o coração isolado para não lhe dar a chance de nos contar o que imagina pra gente e o que ainda podemos desenhar juntos nessa jornada. Se a ficha cair. Se rolar afeto. Se houver diálogo.
Mas chega um momento, acredito, em que, lá no fundo, a gente começa a desconfiar de que algo não está bem e que, embora seja mais fácil culpar Deus e o mundo, nominar réus, inventariar frustrações, vai ver que os algozes moram em nós, dividindo espaço com o tal desenhista que, temporariamente, está com a ponta do lápis quebrada. Sem fazer alarde, a gente começa a perceber os tímidos indícios que vêm nos dizer que já não suportamos carregar tanto peso como antes e viver só para aguentar. Queremos mais: queremos o conforto bom da alegria e o entusiasmo capaz de nos fazer levantar da cama de manhã com vontade de ajudar a florescer, mais ou finalmente, o que nos importa.
Devagarinho, a gente começa a sentir que algo precisa ser feito. Embora ainda não faça. Embora ainda insista em fazer ouvidos de mercador para a própria consciência. Embora às vezes ainda estresse toda a musculatura da alma, lesione a vida, enrijeça o riso, embace o brilho dos olhos, envenene os rios por onde corre o amor. Por medo da mudança, quando não dá mais para carregar tanto peso, a gente aprende a empurrá-lo, desaprendendo um pouco mais o prazer. Quase nem consegue respirar de tanto esforço, mas aguenta ou pelo menos faz de conta, algumas vezes até com estranho orgulho. Até que chega a hora em que a resistência é vencida. A gente aceita encarar o casulo. A gente deixa a natureza tecer outra história. A gente quer tecer junto. A gente permite que a borboleta aconteça.
Nascemos também para aprender a amar. Para dançar com a vida com mais leveza. Para, presentes, curar passados e perfumar futuros. Para criar mais espaço de bem-estar dentro da gente. Para ser mais felizes e bondosos. Para respirar mais macio. Podemos ainda subestimar a nossa coragem para assumir esse aprendizado e acolher, passo a passo, no nosso ritmo, essa experiência. Podemos nos acostumar a olhar o peso e o aperto, nossos e alheios, tanto sofrimento por metro quadrado, como coisa que não pode nunca ser transformada. Podemos sentir um medo imenso e passar longas temporadas quase paralisados de tanto susto. Podemos esgotar vários calendários sem dar a menor importância para o material didático que, aqui e ali, a vida nos oferece. Podemos ignorar as lições do livro-texto que é o tempo e guardar, bem escondido da nossa prática, esse caderno de exercícios que é o nosso relacionamento com nós mesmos e com os outros. Apesar disso tudo, a nossa semente, desde sempre, já inclui as asas. Já vislumbra o voo. Já sorri pro riso. Já é feita para um dia fazer florir o amor que abriga. Mais cedo ou mais tarde, floresce. É o propósito dela.

 

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